Cotidiano

Anjos também choram

Written by Zeneide

Ele acaba de se arrumar, ajeita melhor as asas, sobe no pedestal e fica totalmente imóvel.

Difícil se acostumar com essa performance, mas é a única alternativa depois de procurar desesperadamente por emprego. A crise o atingiu pouco antes do nascimento do seu filho e, sem nenhuma outra opção, decidiu bancar a estátua viva, próximo a uma das estações de trem mais movimentadas, para ganhar os trocados tão necessários. Ainda mais hoje que seu coração está apertado por haver deixado a esposa sozinha com o bebê doente.

As pessoas andam apressadas, olhando rapidamente, só alguns se detêm para observar aquela estátua, tão branca e angelical. Crianças principalmente. A mãe dá moedas para a filhinha colocar na bandeja ao lado, no chão. Então, o anjo se inclina lentamente, faz um gesto de abençoar e lhe entrega uma pequena mensagem otimista.

Essa cena se repete várias vezes. Aos poucos, o pratinho vai se enchendo de moedas e tem até algumas notas. Muita gente sai dali aparentando emoção e alegria. Aí é que faz nova oração pelo filhinho enfermo.

O sol começa a bater forte, mas ele permanece ali com aquelas vestes compridas, incômodas. Pior é a imobilidade que enrijece os músculos, produz fadiga, ataca as articulações e chega a amortecer braços e pernas. Sinais perturbadores de cãibras se anunciam. Aprendeu a segurar a bexiga e a suportar a falta da refeição no meio do dia. É preciso aguentar mais, pois nessa hora o movimento é maior.

Quase sorri quando uma menininha negra diz: “Pai, eu também quero ser anjo quando crescer. Será que só existe anjo branco?” Outra criança, mais sapeca, vem devagarinho para beliscar sua perna; quer ver se ele é de verdade.

E o tempo vai passando vagarosamente… O trânsito de pessoas diminui e ele sente que chegou ao seu limite. Com esforço se recompõe, tira as roupas, limpa um pouco o rosto, coloca óculos escuros e boné, junta suas coisas e dirige-se à estação.

Nesse momento, toca seu celular. A esposa, com cansaço e alegria na voz , diz que o bebê não tem mais febre e dorme tranquilo. Ele precisa levar mais um frasco de remédio…

– Graças a Deus! – murmura o anjo. E desta vez, o choro é de alívio e gratidão.

About the author

Zeneide

Meu nome é Zeneide Ribeiro de Santana, professora de Língua Portuguesa e Literatura. Já sou aposentada e aproveito meu tempo lendo bastante e tricotando um pouco.