Cotidiano

Se não tivesse amor

Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a “Primeira Epístola aos Coríntios”.
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A “Primeira Epístola aos Coríntios” …
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim…
Sou nada…
Sou uma ficção…
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
“Se eu não tivesse a caridade.”
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre…
“Se eu não tivesse a caridade…”
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade.
                                       (Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
Na versão atualizada de I Cor. 13, a palavra “Amor” foi utilizada no lugar de caridade.
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine…  Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.”
Para mim, o verso final do poema “Meu Deus, e eu que não tenho caridade” soa como uma terrível confissão: a constatação de uma deficiência afetiva. Especialmente depois de se referir à mensagem enviada pela soberana luz, há muito tempo. E a mensagem já era conhecida, uma vez que ele a estava relendo!
Assim como os discípulos pediram a Jesus que lhes aumentasse a fé, vamos também pedir-lhe :
– Senhor, multiplica o amor em minha vida! 

About the author

Zeneide

Meu nome é Zeneide Ribeiro de Santana, professora de Língua Portuguesa e Literatura. Já sou aposentada e aproveito meu tempo lendo bastante e tricotando um pouco.