Cotidiano

A prenda

Written by Zeneide

 

 

Encanta-me a capacidade das crianças de imaginar coisas, pessoas e situações. Por isso é uma delícia contar histórias observando aqueles olhinhos curiosos e atentos. E se você diz: “Então, o cachorrinho falou...” – ela acredita e quer saber o quê…

Mundo fantástico do faz-de-conta, já visitado por nós na infância longínqua… E essa capacidade de sonhar e essa magia do mundo encantado não vão embora para sempre… Gostamos de idealizar, de pensar numa realidade paralela, onde tudo pode acontecer. Estão aí os filmes fantásticos, recheados de efeitos especiais, que mexem com a mente de adultos também.

Da mesma forma que a criança pequena aprende a dramatizar e finge comer no pratinho improvisado onde colocou a comidinha imaginada, podemos criar, inventar, sonhar para construir uma realidade mais prazerosa… Por isso a leitura nos leva a viagens incríveis, que nos fazem participantes de uma supra-realidade mágica…

Lembram-se de “O Pequeno Príncipe”? Quando lhe deram o desenho de uma caixa com furinhos e disseram que o carneiro estava lá dentro, ele nem questionou. Apenas disse: “Era assim mesmo que eu queria! Será preciso muito capim para esse carneiro?”

A causa dessa reflexão?  Esta história encantadora declamada pelo escritor moçambicano Mia Couto:

A PRENDA

O menino
recebeu a dádiva.

Era o seu dia, assim disseram.

Estranhou:
os outros dias não eram seus?

Se achegou.
Espreitou.

A oferenda,
era co..isa nenhuma
que nem parecia existir.

– O que é isso?, perguntou.
– É uma prenda, responderam.

Que prenda poderia ser
se tinha forma de nada.

– Abre.

Abrir como
se não tinha fora nem dentro?

– Prova.

Como provar
o que não tem onde se pegar?

Olhou melhor.
Fixou não a prenda,
mas os olhos de quem a dava.

Foi, então:
o que era nada
lhe pareceu tudo.

Grato,
retribuiu com palavra e beijo.

O que lhe ofereciam
era a divina graça do inventar.

Um talento
para não ter nada.

Mas um dom
para ser tudo.

Mia Couto

No livro “Vagas e Lumes“, pág. 105 e 106

About the author

Zeneide

Meu nome é Zeneide Ribeiro de Santana, professora de Língua Portuguesa e Literatura. Já sou aposentada e aproveito meu tempo lendo bastante e tricotando um pouco.