Precisava escrever um conto de ficção, mas não me sentia inspirada, apesar de tudo. “Tudo” significa uma linda manhã de sol, saúde razoável, cafezinho com leite acompanhado de pão caseiro, sem falar na saudade boa, que já se tornou rotina.
Talvez a culpa da falta de inspiração seja dessa rotina chatinha que veio morar aqui sem ser convidada e foi se apossando deste espaço sem a menor cerimônia… Por causa dela, acordo, oro automaticamente agradecendo pela noite e pedindo bênçãos para o novo dia. Às vezes – não sempre – leio algum devocional no celular, antes de levantar…
Mas ontem acordei com a intenção de escrever o tal texto e até aquela hora, nada me viera à mente. Parecia que um vazio havia se instalado em mim e minha cabeça estava oca… De repente, um latido feroz me levou à janela. Continuavam, agora mais fortes os latidos e, do sétimo andar, percorri com o olhar a direção dos sons, entre os quintais. Meu Pai! O que seria aquilo no canto do muro daquela casa que parecia abandonada? Uma bola de pelo, enorme, cinzenta, se mexendo sem parar? E os sons arrepiantes?
Aiaiai… Que seria aquilo? Boa coisa não devia ser… Grande, peluda, escura, se mexendo, com sons estranhos, roucos e ferozes!?
O barulho se acalmou e saí da janela, me censurando. Onde se viu uma idosa como eu se assustando com latidos em plena manhã ensolarada? Que bobagem!
Ajeitei minhas coisas e recomecei a busca por um tema para o tal conto… Nada! Desisti de forçar os neurônios, peguei o tricô e continuei a blusa do meu netinho. Ah, o Levi vai ficar mais lindo ainda usando esse tom verde azulado! De vez em quando ouvia ainda uns latidos, agora mais abafados e minha imaginação foi se tranquilizando. Mais tarde, resolvi ir ao mercadinho da esquina comprar frutas.
Lá encontrei umas vizinhas alvoroçadas comentando sobre os latidos da manhã. Senti- me um pouco melhor por descobrir que aquilo havia acontecido de fato: não fora produto da imaginação. Perguntaram-me se ouvi também e eu disse o que tinha visto naquele quintal. Aí uma delas falou que iria ligar para o proprietário da casa que estava vazia há semanas, para ser reformada.
Só hoje de manhã fiquei sabendo que a polícia esteve no local e lá identificou um senhor idoso, confuso, que estava desaparecido há dois dias, procurado pela família, todos muito carentes. Era portador de Alzheimer e, ninguém sabe como, acompanhado de um cão vira- lata, entrou naquele quintal e se enrolou num velho cobertor que lá estava (a tal bola cinzenta que vi se mexendo da minha janela). O animal devia estar sedento e faminto também…
Imediatamente me pipocaram ideias na cabeça, antes tão vazia: procurar o endereço daquela família, ligar para o MASD (Ministério de Ação Social e Diaconal) da igreja, pedindo ajuda para cesta básica, roupas, etc. Eu mesma poderia tricotar gorros e meias, pois ouvi que uma frente fria estava se aproximando…
Enquanto planejava essa e mais ações, me lembrei de que era o último dia do prazo para escrever o conto de ficção cristã… Ficção? Refleti, então, que a fome, a doença, a necessidade, a miséria não são virtuais de forma alguma; são bem reais, concretas, visíveis, tangíveis mesmo… O Evangelho de Cristo também, sem dúvida. Preciso enxergar e amar meu próximo, na realidade do aqui e agora, não apenas me condoer, sentir piedade passageira ou reclamar do poder público. Devo aprender a mover-me de íntima e profunda compaixão, como Jesus Cristo fez (e faz) e procurar agir mais conforme ele ensina…
Pois bem, por tudo isso não consegui escrever o pretendido conto de ficção cristã.
