Cotidiano

A freira e a manicure

Numa véspera de feriado, precisei ficar horas na Rodoviária, esperando meu ônibus para Serra Negra. Naquele dia, a multidão que transitava por ali era especialmente numerosa e diversificada.

Quando sentei, vi uma freira bem velhinha no banco da frente, com um rosário nas mãos, rezando, com os olhos meio parados.  Hábito claro, pele enrugada, cabelos brancos escapando de um lenço simples, amarrado à cabeça.

De repente, sentou-se ao meu lado uma bela jovem, toda extrovertida e sorridente, que foi logo acomodando a bagagem no chão. Em seguida  tirou da frasqueira uns apetrechos de manicure e, sem nenhuma cerimônia, lixou as unhas compridas. Depois pegou um vidro de esmalte vermelho e  começou a pintá-las, com o maior capricho.

Reparei, então, na freira que olhava a moça, fascinada. Não conseguia despregar os olhos das longas unhas se cobrindo do verniz vibrante, embora seus lábios continuassem se mexendo lentamente e seus dedos girando as contas do rosário.

Desisti das palavras cruzadas; fiquei imaginando o que se passava na mente daquela anciã. Lampejos do passado, quando também pintava  as unhas? Análise da cor do esmalte: vermelho significava  amor…  ou pecado?  Reprovação pela vaidade explícita da garota que olhava  satisfeita cada dedo  “pronto”  e dava uma assopradinha? Lembrança da “vida que poderia ter sido e que não foi “ conforme os versos de Manuel Bandeira?

Dali a pouco, a freira  guardou o rosário no bolso, pegou a maleta e saiu caminhando encurvada, dirigindo-se à plataforma de embarque para sei lá onde. A jovem pegou uma revista de modas e pôs-se a folheá-la com todo o cuidado.

E eu fiquei ali, parada, pensando na minha tola pretensão de tentar adivinhar pensamentos. Li  há tempos,  que desvendar a alma humana é tão difícil quanto esvaziar um oceano. Concordo.

About the author

Zeneide

Meu nome é Zeneide Ribeiro de Santana, professora de Língua Portuguesa e Literatura. Já sou aposentada e aproveito meu tempo lendo bastante e tricotando um pouco.

6 Comments